Tá certo que o casuar é um animal meio estranho, com aquele jeitão de bicho pré-histórico. Mas até aí negar que ele é uma ave parece demais, não? Só que, para o povo Karam, o casuar não é considerado uma. Ele recebe uma classificação própria, da qual ele é o único representante.
Nós estamos acostumados a classificar os animais em 5 grandes grupos: peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Isso sem contar todos os invertebrados (insetos, crustáceos, poríferos, vermes, etc, etc). Embora pareça uma classificação óbvia e natural, ela é resultado de séculos de estudos. Atualmente, além de agrupar os animais por suas semelhanças, a classificação sistemática obedece também a forma como eles evoluíram. Assim, animais que pertencem a um mesmo grupo ou sub-grupo são realmente “parentes” mais próximos em relação a animais que pertencem a outros grupos.
Pois bem. Os Karam, povo que vivia em uma região montanhosa da Nova Guiné, nunca tinham ouvido falar em sistemática filogenética. Como tantos outros povos, eles criaram sua própria maneira de classificar os animais que conheciam, e ela é particularmente interessante! De modo geral, eles dividiam os animais em 14 grupos. Por exemplo, o grupo kopyak compreendia os ratos. Já wowiy era o grupo das lagartixas. Outros grupos unem animais que para nós são bem distintos: as era a denominação tanto para sapos como para pequenos mamíferos.
Agora, vamos ao que interessa: as aves. Os Karam conheciam bem as aves de sua região. Davam nome para quase todas, cerca de 180 espécies. No entanto, para eles, aves e morcegos pertenciam ao mesmo grupo, chamado yakt. Pode parecer um grande erro, mas até o século 17 os europeus também achavam que morcegos eram pássaros. O curioso é que o casuar, e somente o casuar, não entrava neste grupo. Ele era um kobtiy.
Ralph Bulmer, antropólogo neozelandês, ficou muito intrigado com essa questão. Quando, há muito tempo atrás, ele questionou alguns Karam, eles responderam que o casuar não é uma ave pois não tem penas e porque sua cabeça é pelada. Realmente, a plumagem do casuar é bem diferente da de outras aves, mas Ralph estranhou a resposta uma vez que morcegos também não tem penas mas são considerados aves por eles.
Foi preciso estudar a fundo aquela sociedade para começar a compreender o dilema. O casuar estava presente em muitas crenças e regras dos Karam.
- Durante a caça do casuar, os homens deviam utilizar um linguajar especial, diferente do usado no dia-a-dia. Tudo em respeito ao animal.
- O sangue do casuar não devia ser derramado, por isso ele não podia ser caçado com flechas ou lanças, somente armadilhas.
- O caçador que matasse um casuar devia comer seu coração.
- O casuar só servia de alimento em ocasiões especiais, durante cerimônias. Quem matasse ou se alimentasse de um casuar não deveria se aproximar das plantações de taro (um importante alimento) por um mês.
- Casuares vivos não eram permitidos nos povoados, nem deviam ser domesticados (ao contrário da tradição de outros povos da Nova Guiné).
Todo este respeito ao casuar devia-se a crença de que esse animal era um tipo de parente próximo do povo Karam. Na floresta, os Karam chamavam os casuares de irmãos e primos. Ralph Bulmer chegou a conclusão de que o casuar não era considerado uma ave devido a essa profunda relação, mística, entre homem e animal.
Não consegui descobrir se este povo ainda existe. Na época em que o artigo foi escrito, 1967, eles eram cerca de 13 mil.
Hoje ainda vivem três das quatro espécies conhecidas de casuares. Todas se encontram em estado de vulnerabilidade ou quase ameaçadas de extinção. Segundo Ralph, os hábitos dos Karam, tão criteriosos, impediram que o casuar desaparecesse daquela região.
Referência
Ralph Bulmer (1967). Why is the cassowary not a bird? A problem of zoological taxonomy among the Karam of the New Guinea highlands Man, 2 (1), 5-25