Há muitas razões para fazer o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha. Algumas pessoas procuram um sentido mais religioso ou espiritual, outras precisam de um tempo para estar só e colocar os pensamentos em ordem, muitas são atraídas pelo desafio de transpor centenas de quilômetros com suas próprias pernas. Não sei dizer exatamente o que me levou a topar essa viagem, mas gostei da ideia de me desconectar um pouco do mundo e poder conhecer um lugar novo com mais calma do que geralmente é possível fazer como turista. E, é claro, me pareceu uma boa oportunidade para observar aves!
Victor e eu optamos pela rota mais clássica: o caminho francês. Ao todo foram 32 dias de caminhada. Eu poderia escrever sem parar sobre a experiência da caminhada em si, sobre o desafio de carregar uma mochila pesada durante aproximadamente 9 horas todos o dias, sobre as bolhas nos pés e os albergues para peregrinos… Mas o caminho é muito popular entre brasileiros e é não é difícil encontrar relatos detalhados sobre estas desventuras. Mais complicado é encontrar informações sobre as aves que podem ser vistas ao longo do caminho, então vou me ater ao tema principal do blog!
Em toda a Espanha podem ser encontradas mais de 500 espécies de aves. Esse número inclui muitas espécies migratórias, por isso faz bastante diferença a época do ano para observar aves por lá. Fizemos o Caminho de Santiago em Abril, início da primavera. Nos primeiros dias encontramos árvores completamente sem folhas, mas a paisagem foi mudando e conforme nos aproximávamos do final da peregrinação tudo foi ficando mais verde. A data também nos deu a oportunidade de observar as cegonhas em seu período reprodutivo, que vai mais ou menos de Abril a Junho. No final do mês já estávamos encontrando ninhos com filhotes. Os ninhos são grandes e podem ser reutilizados pelas cegonhas por muitos anos.
O Caminho de Santiago leva a muitos pequenos pueblos, mas também atravessa cidades de porte como Pamplona, Logroño, Burgos e León. Mas a maior parte do caminho passa pela área rural. Por isso a maioria das aves que observamos são justamente aquelas que gostam deste tipo de ambiente: estorninho, andorinha-de-bando (Hirunda rustica, a mesma espécie que aparece aqui no Brasil), melro-preto (o famoso Blackbird da música dos Beatles), cuco, pintassilgo-europeu, pardal-montez… Não havia espaço para todas aqui neste post, então fiz uma galeria de fotos com as espécies que conseguimos registrar.
Fotografar aves ao longo do caminho não é das tarefas mais fáceis. A câmera é um peso extra que deve ser levado em consideração. O cansaço também dificulta bastante, perdi a oportunidade de fazer algumas fotos legais por não ter vontade de tirar a câmera da mochila no final do dia. Mas peregrinos acordam muito cedo e nisto se parecem muito com os observadores de aves. A passarinhada rendia muito nas primeiras horas do dia, quando a luz também ajuda bastante. Mas nem sempre estávamos no lugar certo na hora certa. A Laguna de Bercianos, por exemplo. Não sabia da existência deste ponto de observação de aves e, quando passamos por ele o sol já estava a pino. Nenhum patinho na lagoa (que estava bem seca).
Em geral tivemos poucas oportunidades de observar aves mais aquáticas. Lagos são escassos ao longo do caminho francês. Mas logo após Logroño passamos por um parque chamado La Grajera e ali encontramos um grande lago. Não tivemos tempo de explorá-lo direito, mas deu para observar patos, cisnes, frangos-d’água e o meu preferido: o mergulhão!
Grande parte do Caminho de Santiago atravessa a chamada “Meseta”. Formando um enorme platô no centro da Espanha, a Meseta é uma região bastante plana, com intermináveis plantações de trigo e feno. Um verdadeiro deserto verde. Por motivos óbvios, foi onde encontramos menor diversidade de aves. Mas a Meseta é lar de um dos passarinhos mais encantadores que encontramos no Caminho de Santiago: o escribano triguero (conhecido em inglês como Corn Bunting).
Cantar é o que o escribano triguero sabe fazer de melhor. Não que o canto dele seja algo muito incrível (veja no vídeo abaixo), mas o bichinho canta o tempo todo. De manhã cedo ao por do sol. Faça chuva ou faça sol. Mesmo nos horários mais quentes do dia eles estavam lá, cantando, sem se abalar com os peregrinos que passavam a todo instante por seus territórios. Só o vulto de uma ave de rapina fazia um triguero fechar o bico, ainda que por alguns instantes.
Aves de rapina são conhecidas por lá como “aves rapaces”. A Meseta é um ótimo lugar para observá-las. As fotografias não registraram todo seu esplendor, mas vimos milanos negros, milanos reais, busardos ratoneros, águilas calzadas, aguiluchos laguneros, aguiluchos cenizos, buitres leonados… Desculpem os nomes em espanhol, mas acredito que não há tradução adequada para o português do nome popular da maioria destas espécies, que não ocorrem no Brasil. O mais universal seria utilizar os nomes em inglês, mas sempre me interessei muito pelos nomes locais das aves. Pra mim isso é parte importante da passarinhada.
Alguns nomes espanhóis são fáceis de entender. Por exemplo: lavandera boyera. O nome tem a ver com seu comportamento, ela gosta de ficar perto do gado, como faz o nosso suiriri-cavaleiro. É uma ave muito comum nos campos, principalmente quando há água por perto. Um pouco mais difícil de ver, embora também seja bastante comum, é a perdiz (que não precisa de tradução).
Mas a maior surpresa que a Meseta nos reservou foi poder observar um bando de avutardas, ainda que a grande distância. A avutarda é uma ave enorme, chegando a um metro de comprimento e pesando até 16 kg. De fato, é uma das maiores aves do mundo capaz de voar.
Na placa abaixo dá para ter uma ideia melhor de como é uma avutarda. Repare que as informações também estão disponíveis em braille. Ao longo do caminho há várias placas que convidam os visitantes a conhecer a fauna e a flora locais. A observação de aves não é exatamente popular entre os peregrinos, mas encontrei alguns carregando binóculos à tiracolo. Em geral as pessoas nos viam fotografando e vinham perguntar o que estávamos fazendo. Passarinhos são sempre um bom gancho para iniciar uma conversa!
Após percorrer toda a Meseta o visual finalmente começou a mudar. Depois de Astorga encontramos montanhas novamente, um pouco de frio e paisagens deslumbrantes. Foi lá que vimos algumas espécies que preferem um pouco mais de altitude, como o acentor común e o escribano montesino.
Faltando poucos dias para terminar o Caminho de Santiago comecei a me preocupar. A espécie que mais queria encontrar, a abubilla, continuava sem dar as caras. Eu não estava em uma área em que a espécie fosse muito comum, mas ainda não tinha perdido a esperança. Afinal, a ave é discreta e ao longo de quase 800 km eu possivelmente já havia passado por alguma sem perceber. Certo dia, estava eu refletindo sobre o peso da mochila (um pensamento recorrente nesta viagem) e uma abubilla passou voando na minha frente. O encontro deve ter durado uns 3 segundos, mas foi o suficiente para reconhecer esta espécie tão característica. Depois disso ela desapareceu e não a vi novamente no Caminho de Santiago. Dias depois, em Madrid, seguimos algumas dicas e conseguimos encontrar outra, com direito a ninho e filhotes. É esta da foto abaixo. Estava super ocupada procurando alimento no gramado e nós ficamos um tempão só observando e curtindo.
Embora o Caminho de Santiago não seja uma rota de observação de aves, foi uma experiência ornitológica importante para mim. Conhecia muito pouco da avifauna europeia e nesta viagem tive contato com várias espécies, ainda que comuns. Diria que o mais interessante foi poder observá-las por tantos dias, percebendo nuances e trejeitos que não seriam possíveis de captar em um período mais curto.
Por causa da limitação de peso, não levei nenhum guia de campo impresso. Em León não resisti e comprei um pequeno guia da chamada Espanha Verde (norte do país), mas de grande ajuda mesmo foi um aplicativo chamado Aves de España. O app é gratuito e foi desenvolvido pela Sociedade Espanhola de Ornitologia – SEO/BirdLife.
Chegando em Santiago acabaram-se as setas amarelas que nos guiaram por tanto dias de caminhada. Levamos algum tempo para voltar à rotina normal. Ficaram boas lembranças das pessoas que conhecemos, dos lugares por onde passamos, das muitas situações que vivemos. E saudades do canto do escribano triguero!
5 Comentários
Gracias por hacer un trabajo tan bonito para el camino.
Beixos
Muito interessante o relato. As cegonhas e essa Upupa são muito curiosas! Parabéns pelo site.
Agradeço José! Como dizem por lá, fizemos um “buen camino”!
Muy bonito! yo también recorro el camino de santiago observando aves, y vi más de 40 especies, sin binoculares. Sobre todo muchísimo chochín (Troglodytes troglodytes), aguilucho cenizo, busardo ratonero, avefrías incluso (Vanellus vanellus), una maravilla! Buen Camino, peregrina!
Recentemente bati um papo com o jornalista Hélio Araújo sobre as aves do Caminho de Santiago, para o PedCast do Caminho. Pra quem se interessar, o podcast está disponível aqui: https://anchor.fm/pedcast-do-caminho (episódio 63)